quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

"As cores da Alma"


"Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.

Ou em nuvens.




Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol

a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos

os amigos mais íntimos com um cartão de convite

para o ritual do Grande Desfazer: «Fulano de tal

comunica a V. Ex.ª que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. 





Traje de passeio».


E então, solenemente, com passos de reter tempo,

fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos

todos assistir à despedida.



Apertos de mão quentes. Ternura de calafrio.

«Adeus! Adeus!»




E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,

numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos...

em seguida, os lábios... depois, os cabelos...) a carne,



em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se

em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...

como aquela nuvem além (vêem?) - nesta tarde de outono



ainda tocada por um vento de lábios azuis..."


  


josé gomes ferreira - Devia morrer-se de outra maneira.




Fotografias do livro "As Cores da Alma  de Antonieta Figueiredo © All rights reserved





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